Lily Puckett

Publicado em 13/07/2022, Atualizado em 17/07/2022 no jornal The New York Times – Tempo de leitura: 9-12 minutos

Os peixes em conserva estão experimentando um momento especial no mundo da gastronomia. Uma visita à uma fábrica de conservas no Porto põe em foco um negócio centenário.

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Crédito: Daniel Rodrigues para The New York Times

Todas as férias são, de alguma forma, uma observação de outras pessoas trabalhando, enquanto você faz nada. Numa estadia em um hotel você testemunha camareiras e recepcionistas; em jantares, observa chefs, garçons e ajudantes; uma excursão requer um guia turístico, um motorista, um mecânico de barco, se tiver sorte. Mas há uma peculiaridade em ir a uma fábrica e ficar em uma plataforma elevada assistindo os habitantes locais dando duro, à moda antiga, enquanto você foge de seu próprio trabalho.

Porto, a segunda maior cidade de Portugal, é a capital de uma das principais indústrias do país, as conservas de peixes. As sardinhas em conserva estão experimentando um momento especial no mundo da gastronomia. Com latas requintadamente decoradas, sustentabilidade questionável e a indecência de estarem encharcadas de óleo, elas ganharam seguidores devotados entre pessoas jovens que as amam com todo o coração. Nas Conservas Pinhais e Cia, em Matosinhos, uma fábrica de conservas de peixes a poucos quilômetros do centro do Porto, os visitantes são convidados a ver que o seu novo deleite favorito é, na verdade, uma operação muito antiga.

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Crédito: Daniel Rodrigues para The New York Times

Fundada em 1920 por dois irmãos e dois outros parceiros, a Pinhais é considerada uma das melhores produtoras de conservas de peixes no concorrido mercado português. A fábrica da empresa é uma das poucas que sobreviveram à grande mudança da produção de sardinha para a África Ocidental, onde mais da metade de todas as sardinhas são enlatadas atualmente. Suas sardinhas são as preferidas entre os comensais da cidade focada em peixes, e são as favoritas em toda a Europa, embora os clientes americanos possam estar mais familiarizados com o selo internacional da empresa, Nuri, que é amarelo brilhante e está disponível em lojas especializadas e empórios finos. Suas conservas são conhecidas pela alta qualidade e tempero perfeito – e agora, num tour pela fábrica em funcionamento, os fãs de sardinhas podem ver exatamente como são preparadas.

A força de trabalho é quase toda feminina, uma tradição estabelecida pelo fato de que, historicamente, os homens iam para o mar enquanto as mulheres ficavam em terra, onde lidavam com o pescado. Não é incomum gerações de mulheres trabalharem na fábrica, com mães, filhas e tias encontrando empregos estáveis nas conserveiras. Aliás, a visita à fábrica de conservas começa com um vídeo de uma filha portuguesa, esperando que seu pai consiga sobreviver a uma tempestade. (Ele consegue.)

“Esse filme é dedicado a todas as famílias de nossos pescadores, pelo estresse que suportam”, disse a guia Olga Santos, no início de um tour recente. Assim começa a jornada pelo maravilhoso e reverente mundo das sardinhas em conserva.

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Crédito: Daniel Rodrigues para The New York Times

O tour de 90 minutos que a Pinhais lançou em novembro de 2021, começa em um escritório construído originalmente em 1926, equipado com telefones rotativos e um sistema de roldanas onde as encomendas eram fixadas em uma corda e enviadas para o chão de fábrica, separando o escritório da própria fábrica de conservas.

Após o vídeo sobre as famílias de pescadores e um sobre como os temperos dos peixes são adquiridos, uma tela se levanta para revelar uma janela sobre a fábrica em funcionamento. Você deixa a área de exposição impecavelmente decorada – os fundadores projetaram a escadaria de modo que quando você olha para cima no hall de entrada da fábrica, é possível ver o contorno de uma sardinha – para o ‘coração’ da produção.

Depois de vestir trajes de proteção, você segue por uma passarela que corre ao redor de um pavimento dividido por janelas arqueadas, quase todo aberto, exceto alguns escritórios onde funcionários digitam em seus laptops. A primeira coisa que você vê é uma mesa com mulheres cortando pimentas, folhas de louro e picles para as versões picantes das quatro variedades de sardinhas da empresa, que são oferecidas tanto em molho de tomate quanto em azeite de oliva.

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Crédito: Daniel Rodrigues para The New York Times

Na área seguinte, os peixes são banhados em água salgada antes de terem suas cabeças e caudas cortadas com facas de peixe, o que deixa alguns dos aventais dos trabalhadores manchados de sangue e entranhas. Todas as sobras vão para os fabricantes de alimentos para animais, nos diz a Sra. Santos.

Após a pancada, os corpos restantes são colocados em um recipiente vertical em fendas individuais, o que faz parecer que dezenas de sardinhas sem cabeça estão assistindo a uma palestra em um pequeno salão. O auditório passa por um chuveiro antes de entrar em um grande forno, onde o peixe é cozido por 15 minutos. Depois vem a delicada disposição do peixe nas latas, à mão, antes que as mesmas sejam enchidas com azeite de oliva, utilizando-se de máquinas introduzidas há alguns anos. Em um livro promocional que você pode comprar na loja de presentes, alguns trabalhadores da fábrica lamentam a nova máquina de azeite, lembrando-se carinhosamente de ficarem “inteiramente recobertos” de azeite de oliva, que chega do vizinho Vale do Douro.

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Crédito: Daniel Rodrigues para The New York Times

As latas são seladas por máquina, o que explica parte do barulho na fábrica. Também é ruidoso o fluxo constante de água, que percorre todo ambiente enquanto as sardinhas são lavadas várias vezes antes de serem cozidas. Outros ruídos são mais difíceis de rastrear: o spray de óleo, as rodas das polias rolando o peixe de estação em estação e os fornos a vapor, tudo parece criar clamor suficiente para que os visitantes recebam fones de ouvido para escutar o guia enquanto estão no chão de fábrica.

Finalmente, tudo é embalado em velocidade relâmpago em papel de embalagem. Você tem a chance de experimentar isso sozinho em uma sala fechada depois de terminar o tour e se desembrulhar das roupas especiais, mas é impossível igualar a destreza das embaladoras, enquanto manuseiam papéis amarelos, verdes e azuis com facilidade surpreendente.

A Sra. Santos nos diz que “em um bom dia” as mulheres costumam cantar, enquanto embalam. E, quando entramos na fábrica, a conserveira estava realmente em pleno coro, embora, por causa do barulho, as palavras fossem impossíveis de serem compreendidas, mesmo que você falasse português. Se o canto é verdadeiramente espontâneo é difícil de saber, mas o mito das mulheres cantando vem à tona quando se fala com os locais familiarizados com a fábrica. Independentemente disso, parece igualmente provável que cantar seja a melhor maneira de se comunicar por cima do zunido alto do enlatamento de sardinhas, seja um bom dia ou não.

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Crédito: Daniel Rodrigues para The New York Times

O passeio termina com uma degustação das sardinhas que você acabou de ver sendo enlatadas, acompanhadas de pão de uma padaria local e vinho opcional. As sardinhas, é preciso dizer, são deliciosas. (E o cheiro na fábrica é de sardinhas recém-pescadas entrando e saindo de água salgada).

“Adoro sardinhas”, diz Sandra van Diessen, 57 anos, vinda da Holanda, entusiasmada após o passeio, enquanto debatíamos os méritos de destrinchar nossas amostras grátis. (Não é preciso, nos diz a Sra. Santos. E nós três rimos porque todos, de qualquer forma, já tínhamos feito isso, mais por hábito do que por necessidade). Após a abertura no outono passado e, com cerca de 70 passeios oferecidos por semana, em inglês, espanhol, português e francês, a fábrica já recebeu até agora 2.821 fãs de sardinha. (Os tours custam 14 euros por pessoa para adultos, mais 3 euros extras para o vinho; 8 euros para crianças).

A cidade do Porto parece orgulhar-se de sua indústria mundial. Por toda a pequena cidade, todos com quem falei sobre a fábrica de Pinhais ecoaram os mesmos sentimentos: são bons empregos, são funcionários queridos e o fato de a fábrica ainda existir é um crédito para a própria região.

“Eles são preciosos para nós”, disse Marta Azevedo, diretora de comunicação da ANCIP, o maior sindicato de conserveiras em Portugal, sobre a Pinhais. “É a melhor conserva de peixe que temos, é o melhor lugar para se trabalhar“.

Mas e os salários? Não é “muito bom”, admitiu ela, estimando que as mulheres ganham cerca de 800 euros por mês, ou cerca de 832 dólares.

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Crédito: Daniel Rodrigues para The New York Times

“Mas em Portugal, os salários são muito baixos”, prosseguiu. “Elas são bem pagas, para Portugal”.

As conservas de sardinha são um prato comum servido em Portugal, e as lojas especializadas da cidade, como a velha Loja das Conservas na ladeirenta Rua de Mouzinho da Silveira, a poucas quadras do Rio Douro, dedicam-se a celebrar os produtos Pinhais, junto com outras marcas locais como a Minerva. Em parceria com a ANCIP, a Loja ainda não retomou suas degustações desde a pandemia, mas a vizinha Mercearia das Flores, na, um pouco mais calma, Rua das Flores, oferece degustações completas. Ambas as lojas, assim como a fábrica, são dirigidas por mulheres, e você pode sempre acompanhar suas sardinhas em torradas com vinhos locais e chocolates finos.

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Crédito: Daniel Rodrigues para The New York Times

Para uma versão mais indecente do clássico prato de pão com peixe, a loja de sanduíches A Sandeira combina as iguarias enlatadas com uma perfeita pasta de pimenta vermelha, tudo servido numa inadequada porcelana vintage de uma loja de ferragens próxima. Perto dali, o bar Aduela, localizado na Rua das Oliveiras, também serve a versão clássica: sardinhas em torradas com tomates frescos. Especialmente perfeito para quem procura gastar muito pouco num local badalado, sendo um ótimo lugar para iniciar um tour pelas sardinhas.

Existe, possivelmente, uma pequena rixa entre aqueles que servem as sardinhas frescas e aqueles que as servem em conservas, segundo o proprietário da Loja das Conservas, que me disse de forma sombria que “ninguém sabe” porque os restaurantes mais finos não servem as famosas conservas da cidade. Os visitantes que procuram provar o peixe fresco têm muitas opções, incluindo o excelente Meia-Nau, onde vêm grelhados na perfeição. O moderno restaurante, localizado na chique Travessa de Cedofeita, exige reservas para o jantar, mas o almoço é mais acessível aos visitantes sem planos. Se por acaso você perguntar sobre a contenda entre os frescos e as conservas, não deixe de mencionar Loja – o dono da Meia-Nau, afinal, é o filho do fundador da loja. No Porto, afinal, as sardinhas são um negócio familiar.

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Crédito: Daniel Rodrigues para The New York Times

A matéria foi originalmente publicada no jornal The New York Times. Todos os créditos são da equipe responsável pela produção.

Fotos: Daniel Rodrigues para The New York Times

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